Edgar Lyra (FIL)

I. Quadro geral

  1. O esforço do grupo se origina da constatação de que os engenheiros são hoje formados do mesmo modo que há 40 anos. O mundo transformou-se e transforma-se, substancial e velozmente – com o advento de novas tecnologias, relações de trabalho e horizontes de produção – e os cursos de engenharia permanecem inalterados em seus implícitos formativos.
  2. É consensual a percepção da necessidade de uma formação revista, posta em diálogo com as tendências do século XXI. Na contramão, põe-se a dificuldade de conceber como seria o novo modelo em suas múltiplas dimensões: teóricas, práticas, éticas, pedagógicas, administrativas, etc.
  3. O rápido e incessante aparecimento de novas tecnologias – de produção, informação, automação, controle, miniaturização, além de seus múltiplos entrelaçamentos – aponta para a necessidade de formação de um profissional capaz de mover-se com agilidade para além dos conhecimentos adquiridos na graduação. Trata-se tanto da contínua aquisição de habilidades novas dentro dos seus âmbitos formativos originais – de fronteiras cada vez mais indefinidas –, quanto de mover-se adequadamente nos contextos em que se inserem as engenharias, desenvolvendo visões de conjunto, capacidades críticas e autocríticas, enfim, a autonomia necessária a lúcidas tomadas de decisão.
  4. Muito abreviadamente falando, o modelo atual investe inicialmente na aquisição de conhecimentos matemáticos, físicos e físico-químicos propedêuticos, oferecidos em geral nos chamados “ciclos-básicos” e caminha, em seguida, para o desenvolvimento de competências específicas – da engenharia mecânica, elétrica, industrial, de telecomunicações, de materiais, etc…
  5. Entre as críticas comuns está a de que o modelo tradicional é por demais assemelhado ao das pós-graduações, portanto, voltado para o desenvolvimento de estudos, pesquisas e compartilhamento de conhecimento através de publicações – e mesmo à formação de professores com esse mesmo perfil. Outra crítica costumeira é a de que a universidade tem capacidades limitadas de atualizar seus equipamentos e práticas formativas, de modo que, uma vez no mercado, os novos engenheiros precisam longa de formação complementar que os “atualize” e alinhe ao trabalho nas empresas. Há ainda uma outra crítica bastante comum, a de que o modelo tradicional produz crescente desmotivação nos alunos, especialmente fomentada pela facilidade de acesso às novidades tecnológicas proporcionado pela Web
  6. Os estágios, numa ponta, assim como a aproximação entre empresa e universidade, no interesse do desenvolvimento de pesquisas aplicadas/encomendadas, poderiam, pelo menos em tese – caso englobassem mais rotineiramente as graduações –, mitigar o descompasso entre a formação que o aluno recebe na universidade e as demandas que efetivamente terá no início da sua vida profissional. Fica por discutir por que essas integrações não se dão de forma mais cabal.
  7. As empresas, por seu turno, veem-se frequentemente às voltas com a necessidade de contratar workshops ou prover “formação complementar” que convide seus engenheiros a pensar “fora da caixa” e adequar-se a demandas de agilidade e criatividade capazes de significar a sobrevivência e o sucesso no grande mercado de engenharia. Conjectura-se que boa parte do apego “às caixas” teria seu nascedouro nas universidades, no tipo de formação básica que oferecem, quiçá, na formação escolar anterior à universidade…
  8. O que se põe em questão é, enfim, que tipo de novo profissional de engenharia poderia melhor se adequar às dinâmicas exigências do mundo contemporâneo, e como ele seria formado nas universidades. Acrescente-se a necessidade de dar a esses profissionais, desde sua graduação, a consciência do lugar do engenheiro no mundo contemporâneo. O crescente poder disponibilizado pelas novas tecnologias tem de – ou deveria – fazer-se acompanhar da contrapartida de responsabilidade necessária ao seu desenvolvimento e definição de rumos.


II. Questões e dificuldades

  1. Uma primeira questão é se a “deformação” produzida nas escolas de engenharia se deve mais ao modelo que começa com o “ciclo básico” e depois se diversifica e especializa; ou, se a formação inadequada se radica preferencialmente na pedagogia empregada, baseada em conhecimentos preexistentes a serem transmitidos e na verificação da absorção desses conhecimentos em avaliações por testes e provas. Bem pode ser que as duas instâncias tenham pesos semelhantes no perfil do egresso.
  2. Comecemos pelo ciclo básico. A aquisição de fundamentos matemático-científicos parece responder à necessidade de evitar que os futuros engenheiros sejam apenas operadores de máquinas ou usuários de métodos e procedimentos do tipo caixa-preta, portanto, dependentes e limitados em sua capacidade de enfrentamento de situações que não constem dos manuais. Só que a aquisição de conhecimentos de cálculo, mecânica e termodinâmica, por si só, aferida em provas e exercícios tradicionais, parece cada vez menos proporcionar a desejada “formação teórica”. Acrescente-se ser queixa frequente dos alunos a impossibilidade de enxergarem antecipadamente sentido prático nesses conhecimentos, com consequente efeito de desmotivação, deletério para qualquer aprendizado genuíno. A exceção ficaria por conta dos alunos com maior pendor científico, não exatamente técnico.
  3. Fica também por considerar em que medida, no ciclo profissional, o aluno realmente consegue sintonizar-se com os conhecimentos adquiridos no ciclo básico, ou se aqueles conhecimentos passam apenas a figurar ‘embutidos e invisíveis’ nas técnicas específicas com que passam a lidar. A segmentação em engenharias mecânica, elétrica e outras, pode ainda, ao lidar seletivamente com os conhecimentos adquiridos no ciclo básico, perder de vista o papel que a formação teórica comum poderia ter na comunicação, já na vida profissional, entre as várias engenharias.
  4. Num plano filosófico-pedagógico amplo, pode ser útil, como forma de síntese das questões até agora apresentadas, recorrer (apenas ilustrativamente) à distinção kantiana entre “juízos determinantes” e “juízos reflexionantes”. Trata-se no primeiro tipo de juízo de identificar a que casos gerais pertencem os problemas particulares a resolver. Os conceitos gerais estão disponíveis e é preciso aplicá-los com competência e precisão aos casos particulares. A mão é inversa nos “juízos reflexionantes”. O caso particular não é “enquadrável” num conceito geral disponível, que tem, por isso, que ser criado ou buscado de alguma forma. Saindo do âmbito da filosofia kantiana, pode-se pensar no engenheiro contemporâneo em constante lida com situações novas. Ele precisa ser suficientemente honesto e perspicaz para perceber que a situação é nova, justamente, por não se enquadrar no âmbito dos conhecimentos de que dispõe. Ato contínuo, precisa dar contornos aos saberes de que não dispõe e planejar modo provê-los, o que pode abranger um leque muito amplo de ações. A chamada formação tradicional apostaria pouco nos “desenvolvimentos reflexionantes”, sendo essa carência tida como mais e mais importante nos modos de produção contemporâneos.
  5. Se essa analogia faz sentido, ela pode ser usada para repensar a formação dos novos engenheiros a partir da retomada da pontuação feita em I.2, que antevê múltiplas dimensões para o novo modelo formativo: teóricas, práticas, éticas, pedagógicas, administrativas. A pergunta por esse novo modelo poderia observar a seguinte chave: – Que tipo de conhecimentos gerais e específicos – sobretudo, que relação entre eles – precisariam ser proporcionados ao aluno para pleno desenvolvimento de suas capacidades “reflexionantes”?

III. Competência gerais e conhecimentos específicos

  1. Foram mencionadas nas reuniões algumas das “competências gerais” cuja posse seria imprescindível à boa formação do novo engenheiro, por exemplo, a capacidade de pensar em sentido amplo, com vistas à solução dos múltiplos problemas postos aos profissionais de engenharia, o que envolveria também o domínio de capacidades comunicativas e a percepção de aspectos ético-relacionais.
  2. Dizendo de forma mais ilustrativa, é razoável reivindicar que o profissional capaz de identificar contradições, perceber incoerências, inconsistências ou insuficiências, fazer analogias e transposições, identificar padrões e tendências, contextualizar situações e problemas, perceber prioridades, relevâncias e limites, organizar e expor de forma clara suas dúvidas e conjecturas, perceber potenciais parceiros ou colaboradores… enfim, é razoável reivindicar que esse profissional seja mais capaz de acompanhar o fluxo de novidades, transformações e desafios que caracteriza a contemporaneidade.
  3. Não é preciso muito esforço, por outro lado, para inferir que essas “competências gerais” não podem “rodar no vazio”, carecendo de conhecimentos específicos sobre os quais possam fazer valer sua potência. Talvez aqui uma outra noção filosófica possa ser útil; a de “jogos de linguagem”, trabalhada por Wittgenstein. Desde que o jogador conheça as regras que estruturam um jogo, é razoável imaginar que as referidas competências gerais possam fazer dele um jogador mais hábil, mesmo capaz de deslocar-se entre jogos que experimentem com o primeiro “semelhanças de família”. A questão para a formação do “novo engenheiro”, assim, talvez consista não somente em descobrir como desenvolver as chamadas “competências gerais”, mas selecionar conhecimentos e experiências específicas que lhe permitam, tanto quanto possível, compreender o jogo que se joga na engenharia de hoje, a partir daí tornando-se capaz de desempenhar suas tarefas e inserir-se nas empresas sem ficar confinado a âmbitos demasiado restritos, que logo se mostrarão obsoletos.
  4. As reuniões do grupo têm, todavia, mostrado que não é fácil o consenso sobre a pedagogia a ser adotada num processo formativo assim esboçado, quer no que concerne ao desenvolvimento conjunto do geral e do específico, quer na identificação de possíveis pontos de partida e seleção de conhecimentos específicos indispensáveis. Não passou despercebido ao grupo, por óbvio, a necessidade de professores sintonizados com essas novas dimensões formativas.
  5. Algumas especulações feitas nas reuniões parecem promissoras no sentido ora em pauta. A culinária foi citada como prática laboratorial capaz de fornecer ponto de aplicação exemplar a inúmeros problemas das várias engenharias, na medida em que uma cozinha lida, de forma mais ou menos visível ou técnica com reações químicas, queima, transferência de calor, mecânica de fluídos, conhecimento de materiais, instalações elétricas, dispositivos de segurança, controle e automação e …, claro, gente. Outros “fablabs” poderiam, naturalmente, ser pensados nessa esteira da culinária, quem sabe, também do existente e muito lembrado Riobot.
  6. Parece claro, que, sendo os alunos naturalmente diferentes uns dos outros, tem de haver liberdade para a adoção de diferentes percursos formativos. Cada um desses percursos formativos, por sua vez, tem de conter pedagogia e núcleo de competências gerais e específicas sincronizados, de modo que, no afã de “inovar”, não se caia num processo de formação prematura de especialistas de qualquer espécie.


IV. 
Humanidades

  1. Como a engenharia não é uma profissão ou atividade descolada da vida natural e social, espera-se que promova o bem-estar geral das sociedades em escopo amplo. Está, todavia, longe de ser trivial, desde Platão, o modelo ideal de sociedade, bem como as noções de bem e justiça a ele atrelado, sem falar dos meios a serem mobilizados para a promoção da prosperidade em questão.
  2. Os cursos de engenharia da PUC incluem hoje algumas matérias das chamadas humanidades, como a filosofia e a ética cristã. Mas, essas disciplinas rarissimamente estão sintonizadas com o atual momento hegemonicamente tecnológico da humanidade e com os desafios nele presentes.
  3. A formação do novo engenheiro deveria, enfim, proporcionar aos alunos não só reflexões abertas e amplas sobre ética – e suas diferenciações relativas a outras formas de regulação de conduta e estabilização de comunidades, como o direito, a política, a religião, etc. – como consciência do atual lugar da técnica no mundo contemporâneo, com seus imperativos, demandas, promessas e perigos. Disso depende não só a capacidade do egresso de lidar lucidamente com a necessidade de regras, leis e limites, como de fazer-se atento às tendências globais e a elas ser capaz de responder, desde o nível mais pessoal até aquele que suas responsabilidades profissionais permitirem e demandarem.
  4. Atuei durante certo tempo, em instituições diversas, lecionando “Ética e Liderança”, “Sustentabilidade e Responsabilidade Social”, “Responsabilidade Social Empresarial”, voltados tanto para graduações como MBAs e extensões “in company”. Esses cursos cumprem em geral o papel de preparar os alunos para demandas de mercado, certificação e lida com a opinião pública. Mais raramente proporcionam oportunidade de pensar mais alargada e profundamente, de projetar cenários com maior liberdade e discutir mais a fundo as responsabilidades sociais e ambientais dos setores produtivos.
  5. Um diferencial importante para o curso de formação de engenheiros em pauta seria apostar em disciplinas ou estudos transversais de humanidades que, de fato, permitissem exercícios ético-especulativos à altura da complexidade do momento civilizacional em que vivemos. Bem entendido, não se fala aqui, nem de longe, de teorias filosóficas, sociológicas ou econômicas descoladas do universo dos engenheiros e de seu lugar na renovação do mundo contemporâneo.


V. O egresso

  1. Uma última consideração diz respeito ao perfil dos egressos do novo curso de engenharia da PUC-Rio. Não é demais lembrar que não se trata de preparar gestores ou CEO’s de grandes empresas, mas de proporcionar aos alunos uma formação que maximize suas chances de encontrar caminho em meio ao cipoal do mundo produtivo contemporâneo, com suas transformações, esfumamento de fronteiras e velocidade característicos. Essa constatação leva, por um lado, a uma desoneração da tarefa formativa, mas, por outro, à lida com âmbitos muito abertos de conhecimentos e apostas ousadas na definição das trajetórias formativas. Os desafios são enormes, mas parece, neste momento, ser imperativo enfrentá-los. Amanhã talvez seja tarde.